18/09/2014

- Stella


Stella tem onze anos, cabelos e olhos castanhos e vive na Paris dos anos 70. É uma menina magra, até demais, mas tem poucos amigos. Sua casa é também um bar comandado pelos pais, que se tiveram um dia algum tipo de ambição na vida, deixam-na bem escondida. Entre as voltas que o mundo dá, Stella se vê obrigada a descobrir, por sua conta e risco, os caminhos que podem leva-la as várias pessoas que precisa ser, para conseguir sobreviver no mundo sem ter que se refugiar atrás de um balcão de bar.  

Ao se deparar com uma nova escola, sente muito mais que um choque. Colisões de mundos completamente diferentes. Ela sabe jogar fliperama e poker melhor que muitas pessoas que já deixam a barba por fazer, mas nunca ouviu falar de Balzac e Coneau. Tem pôsteres de Eddy Mitchell pelo quarto, e não consegue entender muito bem o que pode haver de tão errado com a televisão. 

Vivendo sob o mesmo teto que se desestrutura ao abrigar uma realidade bruta de bebidas, drogas e roubo, Stella aprendeu o que era necessário para sua adequação, sobrevivência em um meio hostil, mas agora se retrai porque percebe que nada daquilo a ajuda a resistir as contrariedades de um mundo tão particular, com muitas fórmulas, calçadas e faixas de pedestres, do qual não conhece as regras, e por isso mesmo lhe parece muito mais assustador. 

Stella é uma garota normal, mas que mesmo assim, precisa se encaixar. O filme se passa em um plano continuo de descobertas sobre o mundo feitas quase sem querer e um tanto tortas. Garotos, paixões e o primeiro livro, adquirido com um gosto de rebeldia por enfrentar os preconceitos de um mundo sem muito tempo para intelectualidades. Quase um fruto proibido, esses fazem com que comece a ver um mundo muito mais amplo ao ultrapassar a porta de casa. 

Apesar de uma vida fora dos padrões, ela sempre pode ser pior e não, não é a lei de Murphy, é só probabilidade. Ao observar a casa da avó problemática que mora no interior, mesmo que ainda longe de transformar a vida em exemplo e conseguir fechar um contrato com uma marca de margarina, ao deixar para trás milhares de quilômetros de distância e pessoas da sua história, pela cidade, ela se aproxima cada vez mais de uma saída.  


Os vislumbres da infância permanecem apesar dos vários empecilhos, mas é impossível, quase uma missão para Tom Cruise, não carregar consigo as marcas de uma infância perturbada por uma realidade tão crua, que não teve a disposição contos de fada, mas que é embalada pelas músicas de sucesso da noite que tocam bem abaixo do quarto todos os dias.  

Mesmo com o choque entre mundos tão diversos, Stella aprende que não é preciso haver embate, não é preciso luta, mas é preciso reconhecer o valor de cada ponto de vista. Essa é talvez a grande lição da amiga da menina, Gladys, que faz com que ela enxergue a vida, mesmo que só por alguns minutos, da janela de um prédio, e não de dentro de um bar cercada pela fumaça dos cigarros. A amizade entre as duas meninas, permite a Stella que ache dentro de lugares adversos o pertencimento do coração, que diz o contrário de tudo que foi levada a acreditar. A amizade mostra que não há sobreposição entre um mundo e outro, mas a troca de um aprendizado proporcional. 

Sem grandes reviravoltas, o filme de 2008 com direção de Sylvie Verheyde, dá a impressão de ser uma contemplação à descoberta da vida, de suas mais diferentes maneiras, o que pode pode parecer preguiçoso as vistas dos espectadores mais inquietos, mas que carrega o reconhecimento precoce, da importância das pessoas na construção e desconstrução de uma vida, e o que ela é capaz de fazer, sem ser essencial o conhecimento prévio do caminho que se irá trilhar, mas com um olhar especial sobre as escolhas que se faz para que sejam melhores do que as que levaram até ali. 

Stella em meio ao seu processo de transformação vai deixando saudade para alguns. Não dá lampejos de voltar algum dia a ser o que era porque procura ser uma outra pessoa, ela mesma, que até agora não tinha tido tempo de ser. Stella não é um filme feliz mas também não é triste, está na busca pela veracidade da vida de todos nós, que quando sem muitas angustias mas também sem grandes alegria, se agarra a esperança, fórmula mais que suficiente para manter a coragem de continuar seguindo em frente, mesmo sentindo medo de tudo o tempo todo.

NOTA: 4 / 5

09/09/2014

- Paz insone


Dormir é luxo que noite passada minha mente obrigou meu corpo a abdicar. Ao rolar para lá e para cá imaginando se ficaria imune desses maus momentos se tivesse comprado o colchão do comercial do copo de suco que não derrama, tivesse tomado maracujá ou me entregado fervorosamente as práticas de meditação, cheguei a uma conclusão sem sequer sair da cama.

O que falta não é redenção aos anúncios, o capitalismo que lide com isso e depois veja se há para mim ainda alguma possibilidade de perdão, mas se não houver, fica dito que o que nos inquieta a noite, em colchões de água, de mola ou de palha, é a ausência de respostas.

É a certeza de que o sol vai nascer, mas que você pode não acordar. Aquela de que o ônibus vai estar lotado, que vem acompanhada da dúvida que te faz repensar se escolheu o lado certo ou deveria ter atravessado a rua, e a constatação de que pessoas morrem atravessando na faixa e muito mais fora delas. Em meio a tantas incertezas ter sossego é uma das coisas mais difíceis do mundo. O que é que faz com que a cabeça no travesseiro repouse em paz? O que é paz?

É estar no monte Everest sozinho? Sentir o vento soprar? É se desprender ou se algemar a algo que se ama? Não, não, não. Paz não é mudez, não é ligação que caiu e não se percebeu. Paz não é sinônimo de silêncio, de vento no rosto, esse é na verdade seu parceiro mais fiel a qual foi atribuído o papel de coadjuvante. Paz, é barulho, é acima de tudo, festa de arromba dentro da alma.

Paz está na alegria da dança vergonhosa da vitória saída da década de oitenta que você faz quando não tem ninguém por perto, expressada em um sorriso de conforto para quem se encontra em desespero. É vencer uma maratona sem precisar ganhar de milhares de pessoas. Apesar de inscritos, e largarem na mesma posição, cada um corre para um lado em direção ao seu pódio exclusivo onde só existe o degrau mais alto. Não existe medalha de prata, não existe fração, apesar de muitas vezes, a paz, vir de uma divisão chamada compartilhar.




Só porque a música é ensurdecedora do lado de dentro calando todos os medos, isso não lhe concede o direto a inexistência. E aqui faço um apelo especial ao coração inquieto e insone: as melhores coisas não são escutadas pelos ouvidos, trate de desenvolver suas próprias orelhas, porque em meio a essas olheiras da manhã seguinte acabei de descobrir que quero festas como essas dentro de mim por muito tempo, mas que ainda sejam espaças o suficiente para considera-las algo especial.

Não preciso de um colchão novo ou de maracujá em cápsulas, mas um home theater iria muito bem, obrigada. Vou precisar de uma outra noite acordada para tentar descobrir se a paz tem preferência por alguma marca de fone de ouvido, mas reconheço o avanço feito até aqui. Melhor comprar junto também uma cafeteira para tentar espantar o bocejo, obra dessas reflexões frequentes do horário da madrugada