18/09/2014

- Stella


Stella tem onze anos, cabelos e olhos castanhos e vive na Paris dos anos 70. É uma menina magra, até demais, mas tem poucos amigos. Sua casa é também um bar comandado pelos pais, que se tiveram um dia algum tipo de ambição na vida, deixam-na bem escondida. Entre as voltas que o mundo dá, Stella se vê obrigada a descobrir, por sua conta e risco, os caminhos que podem leva-la as várias pessoas que precisa ser, para conseguir sobreviver no mundo sem ter que se refugiar atrás de um balcão de bar.  

Ao se deparar com uma nova escola, sente muito mais que um choque. Colisões de mundos completamente diferentes. Ela sabe jogar fliperama e poker melhor que muitas pessoas que já deixam a barba por fazer, mas nunca ouviu falar de Balzac e Coneau. Tem pôsteres de Eddy Mitchell pelo quarto, e não consegue entender muito bem o que pode haver de tão errado com a televisão. 

Vivendo sob o mesmo teto que se desestrutura ao abrigar uma realidade bruta de bebidas, drogas e roubo, Stella aprendeu o que era necessário para sua adequação, sobrevivência em um meio hostil, mas agora se retrai porque percebe que nada daquilo a ajuda a resistir as contrariedades de um mundo tão particular, com muitas fórmulas, calçadas e faixas de pedestres, do qual não conhece as regras, e por isso mesmo lhe parece muito mais assustador. 

Stella é uma garota normal, mas que mesmo assim, precisa se encaixar. O filme se passa em um plano continuo de descobertas sobre o mundo feitas quase sem querer e um tanto tortas. Garotos, paixões e o primeiro livro, adquirido com um gosto de rebeldia por enfrentar os preconceitos de um mundo sem muito tempo para intelectualidades. Quase um fruto proibido, esses fazem com que comece a ver um mundo muito mais amplo ao ultrapassar a porta de casa. 

Apesar de uma vida fora dos padrões, ela sempre pode ser pior e não, não é a lei de Murphy, é só probabilidade. Ao observar a casa da avó problemática que mora no interior, mesmo que ainda longe de transformar a vida em exemplo e conseguir fechar um contrato com uma marca de margarina, ao deixar para trás milhares de quilômetros de distância e pessoas da sua história, pela cidade, ela se aproxima cada vez mais de uma saída.  


Os vislumbres da infância permanecem apesar dos vários empecilhos, mas é impossível, quase uma missão para Tom Cruise, não carregar consigo as marcas de uma infância perturbada por uma realidade tão crua, que não teve a disposição contos de fada, mas que é embalada pelas músicas de sucesso da noite que tocam bem abaixo do quarto todos os dias.  

Mesmo com o choque entre mundos tão diversos, Stella aprende que não é preciso haver embate, não é preciso luta, mas é preciso reconhecer o valor de cada ponto de vista. Essa é talvez a grande lição da amiga da menina, Gladys, que faz com que ela enxergue a vida, mesmo que só por alguns minutos, da janela de um prédio, e não de dentro de um bar cercada pela fumaça dos cigarros. A amizade entre as duas meninas, permite a Stella que ache dentro de lugares adversos o pertencimento do coração, que diz o contrário de tudo que foi levada a acreditar. A amizade mostra que não há sobreposição entre um mundo e outro, mas a troca de um aprendizado proporcional. 

Sem grandes reviravoltas, o filme de 2008 com direção de Sylvie Verheyde, dá a impressão de ser uma contemplação à descoberta da vida, de suas mais diferentes maneiras, o que pode pode parecer preguiçoso as vistas dos espectadores mais inquietos, mas que carrega o reconhecimento precoce, da importância das pessoas na construção e desconstrução de uma vida, e o que ela é capaz de fazer, sem ser essencial o conhecimento prévio do caminho que se irá trilhar, mas com um olhar especial sobre as escolhas que se faz para que sejam melhores do que as que levaram até ali. 

Stella em meio ao seu processo de transformação vai deixando saudade para alguns. Não dá lampejos de voltar algum dia a ser o que era porque procura ser uma outra pessoa, ela mesma, que até agora não tinha tido tempo de ser. Stella não é um filme feliz mas também não é triste, está na busca pela veracidade da vida de todos nós, que quando sem muitas angustias mas também sem grandes alegria, se agarra a esperança, fórmula mais que suficiente para manter a coragem de continuar seguindo em frente, mesmo sentindo medo de tudo o tempo todo.

NOTA: 4 / 5

09/09/2014

- Paz insone


Dormir é luxo que noite passada minha mente obrigou meu corpo a abdicar. Ao rolar para lá e para cá imaginando se ficaria imune desses maus momentos se tivesse comprado o colchão do comercial do copo de suco que não derrama, tivesse tomado maracujá ou me entregado fervorosamente as práticas de meditação, cheguei a uma conclusão sem sequer sair da cama.

O que falta não é redenção aos anúncios, o capitalismo que lide com isso e depois veja se há para mim ainda alguma possibilidade de perdão, mas se não houver, fica dito que o que nos inquieta a noite, em colchões de água, de mola ou de palha, é a ausência de respostas.

É a certeza de que o sol vai nascer, mas que você pode não acordar. Aquela de que o ônibus vai estar lotado, que vem acompanhada da dúvida que te faz repensar se escolheu o lado certo ou deveria ter atravessado a rua, e a constatação de que pessoas morrem atravessando na faixa e muito mais fora delas. Em meio a tantas incertezas ter sossego é uma das coisas mais difíceis do mundo. O que é que faz com que a cabeça no travesseiro repouse em paz? O que é paz?

É estar no monte Everest sozinho? Sentir o vento soprar? É se desprender ou se algemar a algo que se ama? Não, não, não. Paz não é mudez, não é ligação que caiu e não se percebeu. Paz não é sinônimo de silêncio, de vento no rosto, esse é na verdade seu parceiro mais fiel a qual foi atribuído o papel de coadjuvante. Paz, é barulho, é acima de tudo, festa de arromba dentro da alma.

Paz está na alegria da dança vergonhosa da vitória saída da década de oitenta que você faz quando não tem ninguém por perto, expressada em um sorriso de conforto para quem se encontra em desespero. É vencer uma maratona sem precisar ganhar de milhares de pessoas. Apesar de inscritos, e largarem na mesma posição, cada um corre para um lado em direção ao seu pódio exclusivo onde só existe o degrau mais alto. Não existe medalha de prata, não existe fração, apesar de muitas vezes, a paz, vir de uma divisão chamada compartilhar.




Só porque a música é ensurdecedora do lado de dentro calando todos os medos, isso não lhe concede o direto a inexistência. E aqui faço um apelo especial ao coração inquieto e insone: as melhores coisas não são escutadas pelos ouvidos, trate de desenvolver suas próprias orelhas, porque em meio a essas olheiras da manhã seguinte acabei de descobrir que quero festas como essas dentro de mim por muito tempo, mas que ainda sejam espaças o suficiente para considera-las algo especial.

Não preciso de um colchão novo ou de maracujá em cápsulas, mas um home theater iria muito bem, obrigada. Vou precisar de uma outra noite acordada para tentar descobrir se a paz tem preferência por alguma marca de fone de ouvido, mas reconheço o avanço feito até aqui. Melhor comprar junto também uma cafeteira para tentar espantar o bocejo, obra dessas reflexões frequentes do horário da madrugada

31/08/2014

- Juntos e Misturados (mais uma vez)


Finda a época com mais bolões por metro quadrado e consultas de adivinhações com direito a sérias conversas com o cosmos, não só os apostadores mais inveterados, mas também os medrosos, perderam a oportunidade de se declararem vencedores ou afirmar os dons em interpretar as forças do universo ao não arriscarem a adivinhar o desfecho previsível do novo filme com o mesmo diretor responsável por Click, Frank Coraci. Nele, Adam Sandler e Drew Barrymore voltam aos cinemas dez anos depois de Como se Fosse a Primeira Vez e dezesseis de Afinados no Amor, para reafirmar a química, mesmo que sob uma fórmula batida.

Adam vinha de uma sucessão de filmes desanimadores. Gente Grande, Cada um Tem a Gêmea que Merece, e Esposa de Mentirinha começaram a levantar questionamentos sobre o paradeiro do homem que construiu seu nome em Hollywood ao preço de muitas risadas. Seu rosto figurava nas caixas de cereais e notas de pedágio, mas ainda que um tanto tímido, ele volta a dar o ar da graça no novo filme. Drew por outro lado, se não mereceu o Oscar, não deu motivos para decepções. Indo das comédias românticas, como Amor à Distância, para o drama de Estão Todos Bem, conseguiu manter o público satisfeito ao longo do tempo.

Jim é o gerente de uma loja de artigos esportivos. Viúvo ao perder sua mulher para o câncer e com três filhas no currículo, bagagem acima do peso dependendo de quem resolva carrega-la, ele não consegue seguir em frente. Lauren ganha a vida arrumando closets. Maníaca por organização, divorciada depois de sofrer uma traição e mãe de dois filhos, pode até ter ânimo para tocar a vida adiante, mas a cada instante parece ter menos ideia de para onde quer leva-la. É em um encontro às escuras que os dois acabam se conhecendo, e o que parecia não poder dar certo nem com promessa de amarração em três dias ou as custas de espancamento, se torna uma aventura pela África, bem sucedida na arte de provocar sorrisos.


Abusando de todos os clichês já conhecidos, Frank Coraci tenta reunir várias cerejas em um único bolo. Vemos Drew e sua familiaridade com campos de baseball, marca de alguns de seus sucessos como em Nunca Fui Beijada, e as tentativas frustradas de Adam Sandler com as crianças, mas ainda assim muito sinceras, como no clássico O Paizão. Se por um lado, Juntos e Misturados não inova, é certo que pelo menos na missão de divertir ele se sai bem.

Balões, rinocerontes, avestruzes, macacos instrumentistas e Terry Crews, que ficou marcado pela interpretação de Julius, o pai pão-duro de Chris, abusa da simpatia e é responsável pelo comando de um coro fiel, com função de não deixar a situação cair no terreno da normalidade, palavra que parece nem existir e mais que proibida no vocabulário.

Apesar da carga dramática em lidar com a perda definitiva e a ausência por opção de alguns laços familiares, a fugacidade dos relacionamentos e o equívoco das primeiras impressões, o roteiro não toma para si a responsabilidade de aprofunda-las, e nem deveria. Criar expectativas entorno de quem já deixa claro que a intenção primordial é fazer rir, é pedir para se decepcionar, mas mesmo assim Frank demonstra que apesar de não ser seu objetivo principal, ainda é possível extrair mensagens de valor do filme.

Observar as paisagens de um safári na África, ter uma boa desculpa para ouvir Boy II Men mais que uma vez e ver as várias referências a cultura pop, fazem o ingresso vale a pena não apesar dos clichês mas por causa deles. Ao contrário do que estão dispostos a nos fazer acreditar, eles são ótimos se consumidos com moderação.       
   
Nessa receita de pitadas de drama, cenário exótico e itens indispensáveis para um bom filme do gênero, ele não sai de sua zona de conforto, mas quem é que quer se sentir incomodado, cutucado e melancólico com um filme de comédia? Quero mais é ver Adam Sandler e Drew Barrymore juntos de novo sem tem que esperar quase meia década para isso.


NOTA: 3.5 / 5

19/08/2014

- Mario Bros não pensou nisso


Encontrar bons encanadores pelo mundo é uma tarefa relativamente fácil. Achar alguns que se arrisquem pela parte elétrica não torna as coisas muito mais difíceis, mas um que também se dedique à profissão de gigolô reduz as buscas consideravelmente.

Fioravante (John Turturro) está com sérios problemas financeiros. Encanador, tem que trabalhar com arranjos de flores para pagar o aluguel. Em uma situação não muito diferente está seu amigo Murray, um livreiro, que mora no Brookilyn rodeado por uma colônia judaica conservadora, e que depois de falir a loja que estava há anos na família, vê na ligação de uma médica (Sharon Stone) à procura de novas aventuras na vida amorosa, a oportunidade de lançar o amigo na profissão mais antiga do mundo.



Mostrando que não é preciso o sexy appeal de Mick Jagger ou a beleza de George Clooney para fazer sucesso com as mulheres, Turturro vai ganhando a simpatia do público com suas poucas palavras ao longo do filme, que sob o nome de Virgil Howard faz da base de seu personagem um ponto de partida para a reconstrução da autoestima feminina, seja pela viuvez, carência ou por colocá-las em uma posição de poder e risco.

Woody Allen mais uma vez interpreta seu melhor papel: ele mesmo, mas agora rodeado por sobrinhos, o que não o impede de fazer disso uma oportunidade para lançar sobre o mundo infantil seu olhar irônico tão característico. Apesar dos cabelos brancos deixando claro que o tempo passa até para os ganhadores de mais prêmios da Academia do que os braços podem aguentar, e que isso não têm nada ou pouquíssimo a ver com a velocidade de palavras proferidas por minuto, apesar de colaborar para a lentidão de seu andar, ele ainda é capaz de aceitar a tarefa de falar pelos dois e cumpri-la como ninguém.



Murray além de ser responsável pelas cenas de comédia, alfineta os estereótipos da cafetinagem ao virar Dan Bango para a clientela que vai se expandindo no boca-boca, reserva um espaço para as piadas raciais e crítica o conservadorismo exagerado de sua própria religião, o que faz com que um dos pontos fortes do filme sejam justamente os diálogos, marca de Woody Allen, mesmo não sendo ele o responsável pela direção.

Amante a Domicílio é sim um bom filme, mas não deixa o desejo de uma segunda visita. John Turturro deixa a sensação de que ainda tem que aprender que para que arte da sedução em uma trama seja bem sucedida, é preciso mais que tango e uma profissão sexual. Ainda assim, é capaz de arrancar risadas, de provocar vontade de dançar ao som de saxofones, de valer o preço do ingresso e de uma pipoca, desde que seja das pequenas, porque mesmo presa há alguns clichês, é preciso admitir um tanto de imprevisibilidade a trama, pois com certeza Mario Bros não pensou nisso na hora de complementar a renda de encanador quando via o orçamento entrar no vermelho.


NOTA: 3.5 / 5

14/08/2014

- A escolha do shampoo

 

Hoje errei, e isso já passou da época de ser uma novidade. Notícia de ontem, ninguém dá mais bola para esse tititi, que não é regravação de novela global, porque já não é a primeira vez e nem tem previsão de término muito em breve, e isso agradeço a expectativa de vida e a precaução, que me impede de ser atropelada todos os dias e de correr quaisquer outros riscos que me levem a óbito.

Errei ao ir na cabeleireira que não devia de jeito nenhum ser permitida a ficar com uma tesoura na mão. Ao confundir o nome do filme que não, não é estrelado pela Julia Roberts e Hugh Grant, nem tem a Sandra Bullock no meio, e que por causa disso, não me dá a oportunidade de poder dizer que é só porque tenho uma tendência a confundir as duas. Errei e nem sempre foram triviais, e na maioria das vezes não teve revanche. Nem todo mundo é francês ou carrega dentro de si o espírito alemão.

Desisti de contar ás vezes que troquei a data de aniversário daqueles amigos que nasceram no mês de março, de ter esquecido o quê contei e para quem, de quando não segui a intuição e disse o que queria e de quando eu a escutei e me calei, mas me arrependo ainda mais de ter guardado dúvidas e de ter muitas certezas tão frágeis.

Depois de tanta lamentação, cansei. A culpa causa mais cansaço do que muita corrida de São Silvestre, porque se carrega mais do que o peso do próprio corpo. Se para que tudo faça sentido é preciso tirar de cada palavra um conselho sobre o modo de conduzir a vida, fui levada a acreditar pela própria que a grande chave da questão está em aceitar que cometemos erros. Saber que há tão poucas verdades absolutas na vida quanto galinhas que botam ovos de ouro ajuda a nos libertar da escravidão de nós mesmos, sabendo que as escolhas não têm em si um poder definitivo, mas que são necessárias para abrir novas possibilidades para o que se pode encontrar no caminho.

Hoje cometi um erro gravíssimo, comprei shampoo ao invés de condicionador. Vendo então os frutos da falta de atenção surgirem a minha frente respirei fundo. Ficarei sem poder lava-lo por um dia ou dois, até conseguir reunir coragem para voltar ao supermercado depois ter a raiva apaziguada pela necessidade, mas sou obrigada a admitir que ainda assim é um ótimo shampoo.

Ainda assim, confundindo embalagens de produto para cabelo, estrelas de Hollywood e aniversários se vive, e por mais que não tenha apego pelo especial de fim de ano ou cruzeiros caríssimos, Roberto Carlos tem razão. O importante são as emoções.

10/08/2014

- Proletariaram o Cupido


Pode ser no meio de uma multidão, na lavanderia, em uma festa ou no vagão de um trem. Quando os olhares se cruzam é como um ataque fulminante que não mata, é como se o mundo se encaixasse e aquela inclinação da Terra já não mais existisse, porque tudo está em seu devido lugar. O amor, ah, ele te encontrou, apesar do Cupido levar uma vida de proletariado fazendo mais horas extras do que o Ministério do Amor permite nas comédias românticas de Hollywood.

Molly (Amy Poehler) é dona de uma pequena loja de doces. Joel (Paul Rudd), cujo primeiro nome é Billy, é funcionário de uma grande empresa disposta a tirar do caminho os pequenos comerciantes com seu poderio econômico. A vida dos dois se entrelaça em coincidências infindáveis mas a vida coloca a prova a todo instante a vontade de ambos de vencerem os imprevistos e se entregarem ao amor em They Came Together.

Não, esse não é um filme estrelado por Tom Hanks e Meg Ryan no final da década de noventa, mas é sim uma grande sátira às comédias românticas Nova-Iorquinas dos últimos tempos e tantas outras que podem até não ter o mesmo cenário, mas que fazem com que encontrões pareçam algo romântico, e não só um acidente dolorido.

A história se constrói em cima de situações absurdas, que incluem rolamento pelas escadas e uma família adepta ao nazismo. Carregando uma sátira debochada faz com que um sorriso apareça de vez em quando para demonstrar um espírito esportivo sobre aquilo que geralmente faz suspirar. O diretor zomba das coincidências do amor que fazem o público sonhar, e também dos finais felizes que só mostram uma parte da história que nunca termina em um final definitivo. Com um roteiro brega em mãos é possível enxergar como um molde preenchido com os mais variados clichês não saiu de moda. Ao contrário das ombreiras, quem já assistiu não tem vergonha de admitir e exibir o gosto pela rua ou no formulário de pesquisa mais próximo.

Os problemas nunca são grandes demais ou intransponíveis e por mais que haja drama, ou na contramão, trate-se os problemas com objetividade, não há remédio melhor para eles do que uma boa dose de comédia romântica, onde o possível não tem antônimo. Nelas, as bagagens de cada um nunca são pesadas o suficiente, e se são, há sempre carregadores a postos.


Na busca por uma sátira de histórias com personagens tão caricatos, o diretor joga sobre eles um pouco de realidade, deixando menos turva a vista de quem observa e normalmente não consegue ver como muitas vezes são situações absurdas que arrebatam o público, dando oportunidade de sentir o gostinho de como seria se personagens saídos de contos de fadas viessem parar na cruel realidade. Desastroso.

Max Greenfield, Schimidt de New Girl e Ed Helms, Andy de The Office, representam alguns dos estereótipos tão conhecidos dos romances. Jake é um vagabundo que vive a sombra do irmão perfeito e bem sucedido, e Eggbert, um consultor de finanças estranho e inconveniente. Mas o diretor David Wain em alguns momentos parece se cansar de jogar personagens tão excêntricos na realidade e acha uma maneira de deixar as coisas ainda mais extravagantes com a presença da famosa juíza Judy, e as participações de Adam Scott (Parks & Recreation), John Stamos (Full House) e Norah Jones na trilha sonora.

Brincando com os clichês do cinema, ele ainda atenta para a uma coreografia sempre bem ensaiada de entrada e saída de cena exibida nas telonas onde tudo acontece no momento certo para levar a um clímax que deveria deixar a audiência sem fôlego. Por optar pelo exagero, o filme peca em determinados momentos, podendo ofender os mais sensíveis com tamanha afronta e falta de cortinas e velas para preservar o romantismo, mas alfineta com acerto o tempo no retrato da construção de um relacionamento no qual normalmente se leva muito mais que noventa minutos para se conhecer, casar e viver feliz para sempre, munidos de mais de dois gostos completamente ordinários como desculpa para se apaixonar.

They Came Together não veio para ser levado a sério, mas muito mais do que nos fazer enxergar o que está bem debaixo do nariz, ele serve na desconstrução de personagens perfeitos, mostrando a muitos sonhadores que não é errado se apaixonar à primeira vista ou sonhar com longas caminhas no parque no outono, mas que ás vezes o peso da realidade pode ser muito bem vindo dentro de nossas vidas exercendo um papel crucial na tarefa de não sermos levados a loucura.

Se a vida fosse uma comédia romântica seria mais fácil, mas em compensação muito mais maluca. Às vezes é bom ter o peso da realidade, porque apesar de não deixar os príncipes encantados existirem em carne e osso, ela também impede os desenhos de saírem das telas com suas bigornas e espingardas. Mas é certo também que de vez em quando é bom ter a disposição um Cupido, mesmo que fajuto, levando uma vida de proletariado em ordem de manter nossos sonhos e esperanças.



NOTA: 3.5 / 5

05/08/2014

- A vida como ela é

Meu vizinho está com dengue e a dona das casas de aluguel na frente da minha teve um problema no joelho. A fisioterapia ajudou pouco, segundo ela o que funciona é a oração.  A minha vizinha aproveitou o tempo afastada do trabalho para abrir uma mercearia, mas sempre quando querem comprar algo ela anuncia que está em falta. O espírito empreendedor se espalhou, e a vizinha dela aproveitou para montar uma barraca de pastel quase no meio da rua quando já é noite, porque não tem uma garagem e o tráfego diminui nesse horário - e não, não são japoneses.

Atravessando a rua e andando cinco metros tem uma garagem que já foi de um cabeleireiro que fazia do espaço minúsculo um lugar bem frequentado. O Oto, do Salão do Oto, virou bombeiro e foi embora. Sentiu necessidade de salvar as pessoas não só da breguice. Desde então o espaço foi uma loja de roupas, uma pastelaria - que também não tinha nenhum japonês envolvido no processo - e hoje vende máquinas de lavar usadas. Nos tempos de internet discada depois da meia noite, a locadora que ficava uns passos mais para frente e tinha um grande pica-pau pintado no portão costumava dar lucro e era ponto de referência, virou lan house, não deu certo. Hoje vende salgados.

Essa rua já teve mulher com sete cachorros, todos com nome de gente, e que toda hora se confundia com o nome da menina que morava na esquina. A Nina, a cachorra envelheceu e morreu, a outra, ser humano, está no mesmo processo, como todos nós.

Nesse espaço estreito e de poucas calçadas já teve velhinho que não tinha um braço que se sentava no portão de casa e protegido pelas grades do portão contava para quem parasse ali como tinha sido um grande detetive e prendido muitos bandidos, com direito a rolamentos e tiros certeiros. Também já houve escândalo de vizinho espiando com binóculos as janelas alheias. Já teve mulher seguindo o marido e descobrindo a traição. Já teve, e ainda tem, mulher que tem fama de bruxa, que não faz nada, que não sai da janela, mulher que faz bolos, que tem muitos gatos, que fala com a árvore, e não se espante se todas elas forem a mesma pessoa.


Mas uma rua não é feita só das mulheres. É também do marido que foi buscar uma pizza e nunca mais voltou, do viciado em Coca-Cola, do moço com um cavaquinho e do rapaz que jogou bola com o Kaká por alguns minutos para um comercial, pode ver a neve caindo pela primeira, e até agora, única vez e tirou foto de tudo para que as pessoas pudessem acreditar.

Nessas coordenadas já teve telhado voando, enchente, falta de energia por causa de pombo que sentou na fiação e racionamento de água. Já teve gato comendo os passarinhos do homem do final da rua e já teve disputa de som mais alto. Já brincaram de amarelinha, elefante colorido e futebol sem traves. Hoje as crianças são poucas porque o tempo passou. Você não tem nada a ver com isso, claro, e eu também não, mas essas são coisas que o Google nunca sonhou em registrar quando passou pela minha rua e merecem ser protocoladas tanto quanto seus caminhos para ir em socorro das pessoas perdidas nesse meio de mundo público muito particular.

Hoje as fitas verdes e amarelas penduradas entre um poste e outro estão pela hora da morte e do próximo vento forte. Agora, de manhã, enquanto vão buscar o pão na padaria da rua de trás, as pessoas estão mais preocupadas em saber a classificação do seu time no Brasileirão, quais são as novas contratações, se foi ganho no apito, quem vai ser o campeão. A vida vai voltando ao normal na medida do possível, porque depois de tantos anos de mesma certidão e CEP já sabem que a caminhada é assim mesmo, meio desarrumada e perigosa, como os buracos da rua, e que vai se acertando só com a insistência e a teima de continuar seguindo.

03/08/2014

- A problemática das bombas atômicas e jogos de xadrez



Talvez seja pela música da Simone que toca em todo Natal, ou por causa das primeiras aulas de história ainda no ensino fundamental, mas ninguém fica indiferente a história do bombardeamento de Hiroshima.  É nesse cenário de caos e horror que “Gen – Pés descalços”, dirigido por Mori Masaki, adaptação dos quadrinhos de Keiji Nakazawa, nos introduz dentro de uma trama singular, que se constrói a partir da morte de milhares de vítimas, que comove e apaixona enquanto nos desafia, junto com os personagens, a encontrar um caminho para a esperança no meio da solidão.

A família de Gen não tem nada de especial. Vivem em uma casa simples que abriga seu irmão Shinji, com quem se diverte pelas ruas de Hiroshima, Eiko sua irmã mais velha, uma mãe debilitada, e um pai, que mesmo trabalhando exaustivamente, não consegue dar a todos a sensação de saciedade das três refeições ao dia. A família de Gen não tem nada de especial além do azar de viver na linha de fogo.

Após o 6 de Agosto de 1945 catastrófico, no qual perde o pai e os irmãos, Gen se incube da missão de cuidar da mãe fraca por complicações de uma gravidez avançada. Já seria tarefa árdua suficiente para um menino em tempos de paz, mas em um cenário de guerra, todas as tristezas e lágrimas das vidas perdidas parecem pesar sobre o ombro, tornando a sobrevivência de quem por sorte escapou do massacre - seja pelo atrasar de um relógio ou um bilhete de trem com antecedência ao ataque - muito mais árdua.

Até mesmo para os mais avisados, conhecedores da história, é difícil não se deixar enganar pelo clima amistoso e feliz no início da animação. Com uma estimativa de mais de 140 mil mortos até dezembro daquele mesmo ano, para aqueles que permaneceram vivos, a Terra continuar girando era o maior dos insultos, mas Masaki, entre cenas que ferem não esquece de nos lembrar que Gen, mesmo depois da guerra, é apenas um menino, e se nada de muito inteligente pode sair dela, como já disse Vonnegut, também não extermina por completo a inocência de ser criança, que muitas vezes é o que lhe permite permanecer são.



As dores de uma realidade nublada pelas nuvens radioativas da bomba se distribuem por seus 83 minutos, mas se tornam assustadoramente nítidas quando Gen se dá conta da fragilidade da vida: “É quase como se elas nunca tivessem estado vivas. Talvez isso seja como no inferno”, e mesmo em meio a um martírio sem estacas, mas construído a partir de equações sem toque de divindade, por mãos humanas, Gen não desiste. Os sacrifícios não são contabilizados, porque ao invés de uma conta na qual o final se perde à vista, o menino confia que a esperança pode sobreviver em meio à guerra, porque deseja continuar vivendo e sua única saída é acreditar.

Na busca por alguém com quem possa dividir o peso dos dias mais escuros, o companheirismo e a compaixão são lições a serem aprendidas no caminho e se provam capacidades indispensáveis para reconhecer uma alma em meio a uma multidão que não precisou de nenhum toque de ficção para se tornarem mortos-vivos.

Quantas vidas um pouco menos de orgulho em uma batalha pouparia? Quanta diferença elas fariam no mundo? São perguntas despertadas que fazem com que a animação não se resuma ao virtuosismo de Gen, mas deixe exposta a magoa como pano de fundo constante, exibindo as feridas que nunca se fecham, as relações fragilizadas, a hostilidade, tornando o roteiro verdadeiro. A guerra surge de um jogo de poder, matéria prima da tristeza, que já não se diferencia das outras partes do ser humano, mas para quem tem o azar de estar no meio da linha de fogo, não há o privilégio da retirada. Apesar de todos irem para a mesma caixa no final do jogo, poucos irão com as mesmas marcas de perdas por batalhas tão cruéis.

“Gen – Pés Descalços” pede um voto de confiança, não por aquilo que somos, mas pelo que podemos ser quando tudo que se costuma conhecer acaba, deixando para os aventureiros a esperança de que mesmo pelos mares mais tenebrosos, por todos e quaisquer obstáculos, o barco que leva a vida continua sem risco de afundar enquanto não se desistir.

01/08/2014

- Muito além da Mata Atlântica



Tudo piorou com a cana de açúcar. A Mata Atlântica foi o primeiro bioma que sofreu o impacto da colonização portuguesa. A exploração predatória, a ocupação desordenada, o assoreamento dos rios... Tudo isso contribuiu para que hoje reste apenas 7% da mata original. Está no jornal, dia sim e dia não, o problema se agrava quando se constata que não é só as árvores que correm sério risco. É também aqueles que as destroem.

Além da Mata Atlântica, o mico leão da cara preta, o macaco prego do peito amarelo, o pinguim africano, a baleia azul, leão persa e o homem, estão em extinção. Sim. Apesar de sermos muito mais de sete bilhões, são raros aqueles que ainda carregam em si, os ideais humanitários. Uma extinção gradual que se dá pelo próprio habitat, onde ser predador da própria espécie virou pré- requisito para sobreviver.

A cada dia somos bombardeados – alguns literalmente, infelizmente – por notícias de homicídio, estupro, sequestros entre tantos outros, que só deixam mais a vista que o lado mais humano hoje respira por aparelhos, sustentado por aqueles que lutam contra a maré e acreditam em uma reviravolta entre o terceiro e o quarto ato.

Biólogos e ecologistas, se atentem para a biodiversidade sim, ela precisa de todo o cuidado, esse é um convite que a população deveria receber pelo correio ou meio que mais lhe convir. Porém, atentem-se também para o reflexo no espelho e para os que se espelham em vocês. A atenção de todos na conservação de algo que nunca deveria ter saído de si mesmo proporcionaria a própria vida uma ajuda crucial pela sobrevivência da espécie.

Proponho que as próximas cédulas, ao invés de sofrerem remodelagem no tamanho, tenham pessoas educadas no verso, que respeitem o próximo, porque até os mais otimistas já sabem que pedir que se tenha amor, extrapola o senso de boa vontade, e que junto pela luta da preservação da fauna e da flora, as pessoas deem seta ao trocar de faixa, que deem flores aos vivos, sangue, boas lembranças. E que Deus seja louvado. Amém.

Texto originalmente publicado no Sem Calendários e inspirado em uma (das muitas) crônicas de Fernando Sabino