03/08/2014

- A problemática das bombas atômicas e jogos de xadrez



Talvez seja pela música da Simone que toca em todo Natal, ou por causa das primeiras aulas de história ainda no ensino fundamental, mas ninguém fica indiferente a história do bombardeamento de Hiroshima.  É nesse cenário de caos e horror que “Gen – Pés descalços”, dirigido por Mori Masaki, adaptação dos quadrinhos de Keiji Nakazawa, nos introduz dentro de uma trama singular, que se constrói a partir da morte de milhares de vítimas, que comove e apaixona enquanto nos desafia, junto com os personagens, a encontrar um caminho para a esperança no meio da solidão.

A família de Gen não tem nada de especial. Vivem em uma casa simples que abriga seu irmão Shinji, com quem se diverte pelas ruas de Hiroshima, Eiko sua irmã mais velha, uma mãe debilitada, e um pai, que mesmo trabalhando exaustivamente, não consegue dar a todos a sensação de saciedade das três refeições ao dia. A família de Gen não tem nada de especial além do azar de viver na linha de fogo.

Após o 6 de Agosto de 1945 catastrófico, no qual perde o pai e os irmãos, Gen se incube da missão de cuidar da mãe fraca por complicações de uma gravidez avançada. Já seria tarefa árdua suficiente para um menino em tempos de paz, mas em um cenário de guerra, todas as tristezas e lágrimas das vidas perdidas parecem pesar sobre o ombro, tornando a sobrevivência de quem por sorte escapou do massacre - seja pelo atrasar de um relógio ou um bilhete de trem com antecedência ao ataque - muito mais árdua.

Até mesmo para os mais avisados, conhecedores da história, é difícil não se deixar enganar pelo clima amistoso e feliz no início da animação. Com uma estimativa de mais de 140 mil mortos até dezembro daquele mesmo ano, para aqueles que permaneceram vivos, a Terra continuar girando era o maior dos insultos, mas Masaki, entre cenas que ferem não esquece de nos lembrar que Gen, mesmo depois da guerra, é apenas um menino, e se nada de muito inteligente pode sair dela, como já disse Vonnegut, também não extermina por completo a inocência de ser criança, que muitas vezes é o que lhe permite permanecer são.



As dores de uma realidade nublada pelas nuvens radioativas da bomba se distribuem por seus 83 minutos, mas se tornam assustadoramente nítidas quando Gen se dá conta da fragilidade da vida: “É quase como se elas nunca tivessem estado vivas. Talvez isso seja como no inferno”, e mesmo em meio a um martírio sem estacas, mas construído a partir de equações sem toque de divindade, por mãos humanas, Gen não desiste. Os sacrifícios não são contabilizados, porque ao invés de uma conta na qual o final se perde à vista, o menino confia que a esperança pode sobreviver em meio à guerra, porque deseja continuar vivendo e sua única saída é acreditar.

Na busca por alguém com quem possa dividir o peso dos dias mais escuros, o companheirismo e a compaixão são lições a serem aprendidas no caminho e se provam capacidades indispensáveis para reconhecer uma alma em meio a uma multidão que não precisou de nenhum toque de ficção para se tornarem mortos-vivos.

Quantas vidas um pouco menos de orgulho em uma batalha pouparia? Quanta diferença elas fariam no mundo? São perguntas despertadas que fazem com que a animação não se resuma ao virtuosismo de Gen, mas deixe exposta a magoa como pano de fundo constante, exibindo as feridas que nunca se fecham, as relações fragilizadas, a hostilidade, tornando o roteiro verdadeiro. A guerra surge de um jogo de poder, matéria prima da tristeza, que já não se diferencia das outras partes do ser humano, mas para quem tem o azar de estar no meio da linha de fogo, não há o privilégio da retirada. Apesar de todos irem para a mesma caixa no final do jogo, poucos irão com as mesmas marcas de perdas por batalhas tão cruéis.

“Gen – Pés Descalços” pede um voto de confiança, não por aquilo que somos, mas pelo que podemos ser quando tudo que se costuma conhecer acaba, deixando para os aventureiros a esperança de que mesmo pelos mares mais tenebrosos, por todos e quaisquer obstáculos, o barco que leva a vida continua sem risco de afundar enquanto não se desistir.

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