05/08/2014

- A vida como ela é

Meu vizinho está com dengue e a dona das casas de aluguel na frente da minha teve um problema no joelho. A fisioterapia ajudou pouco, segundo ela o que funciona é a oração.  A minha vizinha aproveitou o tempo afastada do trabalho para abrir uma mercearia, mas sempre quando querem comprar algo ela anuncia que está em falta. O espírito empreendedor se espalhou, e a vizinha dela aproveitou para montar uma barraca de pastel quase no meio da rua quando já é noite, porque não tem uma garagem e o tráfego diminui nesse horário - e não, não são japoneses.

Atravessando a rua e andando cinco metros tem uma garagem que já foi de um cabeleireiro que fazia do espaço minúsculo um lugar bem frequentado. O Oto, do Salão do Oto, virou bombeiro e foi embora. Sentiu necessidade de salvar as pessoas não só da breguice. Desde então o espaço foi uma loja de roupas, uma pastelaria - que também não tinha nenhum japonês envolvido no processo - e hoje vende máquinas de lavar usadas. Nos tempos de internet discada depois da meia noite, a locadora que ficava uns passos mais para frente e tinha um grande pica-pau pintado no portão costumava dar lucro e era ponto de referência, virou lan house, não deu certo. Hoje vende salgados.

Essa rua já teve mulher com sete cachorros, todos com nome de gente, e que toda hora se confundia com o nome da menina que morava na esquina. A Nina, a cachorra envelheceu e morreu, a outra, ser humano, está no mesmo processo, como todos nós.

Nesse espaço estreito e de poucas calçadas já teve velhinho que não tinha um braço que se sentava no portão de casa e protegido pelas grades do portão contava para quem parasse ali como tinha sido um grande detetive e prendido muitos bandidos, com direito a rolamentos e tiros certeiros. Também já houve escândalo de vizinho espiando com binóculos as janelas alheias. Já teve mulher seguindo o marido e descobrindo a traição. Já teve, e ainda tem, mulher que tem fama de bruxa, que não faz nada, que não sai da janela, mulher que faz bolos, que tem muitos gatos, que fala com a árvore, e não se espante se todas elas forem a mesma pessoa.


Mas uma rua não é feita só das mulheres. É também do marido que foi buscar uma pizza e nunca mais voltou, do viciado em Coca-Cola, do moço com um cavaquinho e do rapaz que jogou bola com o Kaká por alguns minutos para um comercial, pode ver a neve caindo pela primeira, e até agora, única vez e tirou foto de tudo para que as pessoas pudessem acreditar.

Nessas coordenadas já teve telhado voando, enchente, falta de energia por causa de pombo que sentou na fiação e racionamento de água. Já teve gato comendo os passarinhos do homem do final da rua e já teve disputa de som mais alto. Já brincaram de amarelinha, elefante colorido e futebol sem traves. Hoje as crianças são poucas porque o tempo passou. Você não tem nada a ver com isso, claro, e eu também não, mas essas são coisas que o Google nunca sonhou em registrar quando passou pela minha rua e merecem ser protocoladas tanto quanto seus caminhos para ir em socorro das pessoas perdidas nesse meio de mundo público muito particular.

Hoje as fitas verdes e amarelas penduradas entre um poste e outro estão pela hora da morte e do próximo vento forte. Agora, de manhã, enquanto vão buscar o pão na padaria da rua de trás, as pessoas estão mais preocupadas em saber a classificação do seu time no Brasileirão, quais são as novas contratações, se foi ganho no apito, quem vai ser o campeão. A vida vai voltando ao normal na medida do possível, porque depois de tantos anos de mesma certidão e CEP já sabem que a caminhada é assim mesmo, meio desarrumada e perigosa, como os buracos da rua, e que vai se acertando só com a insistência e a teima de continuar seguindo.

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